Ó de
Casa
Maria de Lourdes Camelo
Quando
a loja não ia bem, pai arrumava a mala e saía, pensativo,
para as cidades vizinhas. Era momento frágil em nossa casa.
Mãe procurava os credores e pedia tolerância de alguns dias.
Ajeitava as mercadorias com habilidade, acendia uma vela
para o Sagrado Coração e se despedia na porta, com cautela,
pois ainda era madrugada. Pai sempre voltava com a quantia
certa para as duplicatas e mensalidades da escola. Chegava
exaurido. Rosto pálido, às vezes, empoeirado. Silencioso e
sem queixas, era um homem resignado. Apenas uma vez o vi
dizendo, ao pé do fogão, uma frase: “ - Maria, a humanidade
é má”! Na época, não entendi.
Essas
viagens eram sempre solitárias, mas, mãe concordava que eu o
acompanhasse de vez em quando. Certa vez, pôs uma troca de
roupa na bolsinha verde, de lona, recomendou que escovasse
os dentes e não saísse de perto de pai. Foi uma viagem
inesquecível que fizemos a Bom Jesus do Amparo.
O
ônibus nos deixou numa encruzilhada e seguimos, a pé, por
duas horas. Chegamos à cidade por volta do meio dia e
procuramos a única pensão. Veio uma senhora simpática e
familiar. Arrastou os chinelinhos até a cozinha e voltou com
umas tigelas fumegantes e cheirosas. Desculpou-se, pois a
hora do almoço já havia passado. Mas tudo estava bom. Meu
pai acomodou a mala num canto, lavou as mãos e serviu o meu
prato. Com que dignidade o fez! Ajeitou o arroz, o feijão,
o ovo frito, molinho. Por último, a farinha de mandioca, que
vinha coberta por uma fina teia. Antes que eu dissesse
qualquer coisa, ele me fez sinal e, com o indicador, afastou
a teia servindo-me em seguida. Pela grande janela entrava
uma claridade especial. Comemos com a cerimônia de um
banquete. Eu estava ansiosa, pois aquele seria um dia de
festa como todos os dias da infância.
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Esta foto, do acervo pessoal da Lulude, estão o
sr. Niquinho Gama, Joaquim Ribeiro, Rubens
Camelo e o menino Daniel, em pé. Eles estão
sentados num banco da Praça Bias Fortes. |
Já na
praça, pai acendeu um cigarro, levantou os olhos para a
Matriz e desceu a ladeira principal. Do começo ao fim batia
palmas pelas casas, aguardava e chamava: "Ó de casa!".
Algumas portas se abriam, outras não. Paciente, prosseguia.
"É assim mesmo!", dizia ele. Em uma casa, a senhora
afastou-se do piano, abriu a porta e nos serviu licor de
folhas de uva. Comprou meias finas, caixas de sabonete "Vale
quanto pesa", filós importados da Itália e um terço de
pérola. A vizinha ficou com um quadro de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, bizantino, e fez encomendas. Outra
senhora, com máquina de costura na sala, ficou com todas as
rendas e sinhaninhas. Numa oficina mecânica ficaram os
pentes, gillettes e brilhantinas.
Mas a visita inesquecível
foi a da última casa da ladeira. Colorida, flores na janela
e cortinas esvoaçantes. De fora sentia-se um certo ar de
alegria. Meu pai penteou os cabelos, ajeitou o bigode e
bateu palmas. Notei que o "Ó de casa!" foi mais enfático.
Veio uma senhora perfumada, pintada com decote ousado.
Cumprimentou- nos com familiaridade e nos conduziu à sala de
muitos sofás. Pai estava à vontade. Nunca o vi tão
remoçado. Dos quartos saíam, aos poucos, lindas moças, com
ares tímidos e olhos brilhantes. Ele abriu a mala e exibiu
as mercadorias. Dispersei-me olhando as licoreiras
coloridas, a coleção de discos e os bibelôs. Compraram todas
as meias finas com costura preta, caixas de rouge e crayon,
perfumes, as calcinhas pretas e vermelhas e todos os
soutiens de rendinha..Papai estava feliz, não conseguia
disfarçar. Serviram-nos licor de amora e me presentearam com
uma bonequinha de pano. Ao se despedir da proprietária, meu
pai pousou uma minúscula caixa de "Heure Intime" em suas
mãos com uma piscadela charmosa.
Saímos
da Casa das Moças Alegres, como era chamada, e voltamos para
a pensão. Tomamos banho e fomos para a praça. No bar da
esquina comemos pastel de carne moída com batata e guaraná.
Papai tomou uma cerveja preta e pediu Diamante Negro para a
viagem de volta. Na Matriz visitamos a imagem de Bom Jesus
que veio de Portugal. Ainda brinquei de Amarelinha entre as
raízes da velha árvore da praça, enquanto meu pai me
enquadrava para uma foto fictícia.
Quando
o sereno desceu, como um véu de chuva, fomos dormir. Com
minha camisolinha de flanela, dormi abraçada à boneca de
pano, pensando nas peripécias do dia. Na mala havia apenas
doces para casa e um boneco de Super Homem com destino
certo. Mamãe nos esperaria com lençóis brancos. Na manhã
seguinte iríamos, bem cedo, no caminhão de leite até o
asfalto. Era muito divertido viajar com todo aquele leite
chacoalhando pelas estradas.
Chegamos em casa antes do almoço. Geraldinho deixou os
brinquedos e veio nos abraçar, radiante. A mala foi aberta e
os presentes distribuídos. A casa tinha cheiro de alho.
Rubens puxou um tamborete e acendeu um cigarro. Maria o
contemplava. Achegaram-se ao fogão com ares de intimidade.
Falavam baixinho. Em seguida, ligou a vitrola e todos
dançamos uma valsa vienense.
E me
vêm ainda todas essas lembranças com uma ânsia inocente de
repetir aquele gesto:
"Ó de casa, posso entrar?"
Maria de Lourdes Camelo é alvinopolense e reside
em Lorena-SP .
E-mail: louget@uol.com.br