O CAMPIM DA RUA DE CIMA
Marcos Martino
Mais uma vez a minha filha
sem querer, me levou para uma viagem no tempo.
Ao chegar em casa
tristinha, reclamando que algumas crianças mais velhas
haviam ameaçado a ela e a uma coleguinha na escola, me
fez lembrar meus tempos de craque no antigo campim da
rua de cima, onde se localiza hoje a garagem da Lopes e
Filhos.
A atividade no campinho
começava mais ou menos por volta das 7 da manhã, quando
já havia uma fogueirinha acesa e a turma já começava a
chegar para a primeira grande peleja do dia. Nessa hora
é que os mais novos conseguiam jogar, pois mais ou menos
as 9 os mais velhos chegavam e botavam os pirralhos para
correr.
O único que desafiava os
gigantões era Reinaldo, irmão de Ricardão e Carlinhos Gipão,
pois embora mais novo, era avantajado e não tinha medo de
ninguém.
Quando ameaçavam tirá-lo ele
gritava:
- Ah é? Se eu não jogar, levo
as traves de bambu, pois fui eu quem colocou.
E ninguém ousava desafiá-lo.
A turminha nova só tinha
chance de novo a partir das 13 horas, com sol de rachar
mamona, pois as 15 o campinho voltava a virar terra de
gigantes.
Pelo campinho passaram craques
memoráveis, como o Travolta da rua de cima Silvinho de
Castivilla, o grande Chitão, que era um becão e seu irmão
Bené, Paulinho de Ambrosina com seu canhão, Tom João que era
tipo uma nuvem passageira, suando, molhando todo mundo e
fazendo muitos gols, Manoel de Jaime, também conhecido como
Pastel Venenoso, Carlinhos Gipão, com seu potente chute de
bicuda, Fernando Taioba, Zinho, Geraldim Pistolinha, Marcelo
Xuxa, Ricardão, Amarildo, Ronaldim, Nicolauzim de Vivina,
Luiz de Pintacuda ,Gustavo, Piorra, Zé Meié, Totone, entre
outros...isso no meu tempo.
Lembro-me de casos
engraçados.
Teve uma vez que o time da
Rua Nova veio jogar como convidado. Primeiro tempo o
time da rua de cima ganhava de um a zero. No intervalo,
Luiz de Pintacuda distribuiu Kisuco para o seu time. O
time adversário ficou revoltado e virou o jogo no
segundo tempo.
Numa outra vez, o time da
rua nova voltou para nova partida.
Havia um troféu em
disputa.
Desta vez, perderam de
2x1, mas fugiram e levaram o troféu, que nunca mais foi
visto.
Engraçado também era o fim
das peladas.
Lá pelas 5 da tarde, Dona
Ambrosina gritava – Tão João, tá na hora. Vem bora pra ir
pra aula, minino!
E Tão João respondia:
- Já vô mãe!
Só que o jávô mãe durava
até lá pelas 6 da tarde, quando ninguém mais via a bola,
pois já não havia luz. Nesse instante, alguém chutava a
bola no esgoto que ficava no fundo das casas. Só se
ouvia o baque da bola batendo no rego cheio de rejeitos
humanos e um por um ia gritando:
- Parei!
E a bola sobrava para o
seu dono buscar, geralmente Manoel de Jaime que tinha
melhor situação financeira e sempre tinha uma bola de
capota nova.
Uma coisa engraçada aconteceu
também comigo.
Certa vez, a bola caiu no
mato, perto da casa de Loló e fui buscar. Quando fui pisar
num monte bambus pra passar e pegar a bola, um desses bambus
pontudo foi projetado e perfurou a minha perna. Peguei a
bola e sai para o campinho com aquele bambu ainda agarrado
na panturrilha. Quando cheguei com a bola, mostrei pra turma
e falei que iria parar, pois estava doendo e tinha um
estrepe grande.
Só que como ia desfalcar o
time, alguém ironizou, dizendo:
- Ann, muiezinha!
Eu falei:
- Muiezinha não, tá.
Trinquei os dentes, peguei o
pedaço de bambu que estava ainda agarrado e puxei com força.
Doeu pra caramba, mas agüentei
firme.
Voltei a jogar, pois ser
chamado de muiezinha era uma coisa inaceitável.
Como o ferimento foi profundo,
o sangue jorrou com força e fiquei todo sujo, mas preferível
a dor que ser chamado de muiezinha. Ainda carrego a cicatriz
desse dia até hoje, um troféu para o resto da vida.
Legal também era tomar água na
fonte de Loló em folhas de taioba e as coceiras que tínhamos
por causa dos tombos em cima dos pés de cansanção.
Mas um dia, o campim teve de
ceder lugar ao progresso, mais uma vez o lúdico cedendo
lugar ao prático.
O campim não existe mais, a
não ser em nossas privilegiadas memórias. Com o seu fim,
encerrei também a minha gloriosa carreira no futebol.
Depois, ainda cheguei a tentar
a sorte no Pinga Rato, onde Barbado reinava absoluto, mas já
não tinha futebol suficiente. O campim da rua de cima ficou
como mais uma página na vida de muitos de nós, sortudos por
ter uma infância tão boa.
Ô saudade, meu Deus!
Marcos Martino é
alvinopolense, poeta, escritor, jornalista, músico.
Email :
marcos.martino@gmail.com