Era
uma vez... duas meninas e dois meninos que foram
protagonistas de uma história de amor e fizeram
brilhar estrelas no paraíso terráqueo existente na
vida de um casal enamorado.
A dama progenitora cita Gilberto Gil e olhando
fotografias de seus filhos ela suspira
parafraseando: “há de surgir uma estrela no céu cada
vez que você sorrir. Há de surgir uma estrela no céu
cada vez que você chorar.” Sem alternativa mais
adequada, ela afivela as malas e voa. Para onde? Não
sei. Sei apenas que sua voz está irregular - como se
estivesse fazendo algo incomum - e em seu coração
existe uma conotação rítmica mais acelerada e mais
complexa. Mas, suas asas não têm controles de
direção, nem flaps, nem leme.
Quase a completar seus setenta anos de idade - digo
por sua aparência aflita - ela quer realizar um
único pedido: que neste vôo ela volte aos anos de
mil novecentos e quarenta e cinco e comece tudo de
novo.
Lamentavelmente ela sabe que é impossível ser
atendido seu desejo. Fazer o que? Infelizmente não
tem como viver de promessas vazias. Como em um filme
seu passado ressurge e assim ela o pontua: não dá
para eu me acostumar com sua grandeza e deixá-lo no
anonimato das lembranças. Seus dedos irreverentes
fazem agora uma dança interpretativa, tal e qual sua
memória ainda lhe concede, enquanto a chuva não
chega. Com sua força poética, emocionados eles vão
clicando e transpondo os limites de seu universo
particular. Com sua imaginação privilegiada,
metáforas cheirando a ausências, acordes a despertar
o coração, o cálice do ventre de sua mãe quase a
transbordá-la de suas águas amnióticas, e um denso
silêncio que escondia seu cantar se faz presente com
seu renascer em um feliz trinta e um de maio.
Seus dedos artesãos continuam reconstituindo novas
leituras sem a perda de seus reais significados, com
novas texturas que a remetem a um passeio em uma
montanha-russa com subidas e descidas em sua alma.
Uni-duni-tê quase tem sido um mantra para que as
lembranças cheguem e com toda sua infantilidade
libertem a poesia dos brinquedos e com sua
jovialidade oxigenem sua mente para o lúdico e elas
possam residir entre suas palavras.
Ah, meus dias infantes, ela diz para si mesma: que
lástima! Sei que não há como voltar... mas eu também
sei como me vingar de minha infância e lá eu retorno
nas lembranças que se deitaram. Faço meus brinquedos
ganharem vida, faço a boneca de pano brincar entre
minhas letras, faço a alegria do papagaio ser
comandada pelas mãos da menina arteira.
“Uni-duni-tê... meu sonho encantado onde está você”?
Naquele corpo raquítico havia versos minguados em
poesia, nele havia a lua e as estrelas e toda
fantasia cabia na palma de sua mão franzina.
Mas, disseram-lhe que sua infância já não existia.
Ela havia ido embora. Aí houve a anulação da rua
rumorosa, das alegrias ruidosas, das brincadeiras
liricamente inocentes deixando somente um silêncio
permanente. Mas ela só acreditou, quando precisou
usar sutiã e não lhe escaparam o cheiro do pecado e
da sedução, que vestiam seu corpo em primavera, que
enfeitava sua sensualidade morena brotada na pele,
na pele ataviada de seus poros, na pele bronzeada
que a tantos pasmaram ante sua cor de canela.
Ah, aquele tempo de corações desenhados nos troncos
das árvores, com a flecha de cupido a
transpassá-los. Ah, aquela adolescência que em
grande parte vivida a dizer “não” aos sentimentos
aos quais gostaria de dizer “sim”. Ah, aquela jovem
que lisonjeada se sentia com os arrepios via espinha
dorsal, causados por um flerte mais atrevido, por
uma luxuria libidinosa que vagueava por destinos
desconhecidos, como fora para os navegadores que o
mar cruzava. Por uma razão simples isto sempre lhe
acontecia. Ela era uma jovem interiorana e vivia sob
as normas disciplinares existentes em sua casa
paterna anotadas em seu subconsciente e obedecidas,
caso contrário teria de conformar-se com tal sorte
ou arcar com as consequencias. Sua alma sem qualquer
experiência na vida, além das brincadeiras na rua,
no quintal com seu circo mágico, se viu a sorver o
mel de sua mocidade. Seus cabelos castanhos escuros
- como asas de uma graúna - voavam livremente sobre
seus ombros, sem qualquer outro recurso ou
subterfúgio, porque eram lisos demais. Mas não
passaram impunes aos olhos maliciosos de um jovem. E
ela passara a sonhar com aqueles olhos que pareciam
engolir o caminhar de seu corpo, quase de uma menina
grande e ingênua. E ela se viu a sentir-se enamorada
dele e sua lição de geografia lhe afirmava que se
seguisse em linha reta, por certo, iria chegar a
seus braços, todavia se caminhasse um pouco para o
norte, sua sorte seria - em breve - ser beijada por
ele.
Ela
passa a viver o futuro em vez do presente e a dança
de um acasalamento se ensaia com um ar sensual, com
um magnetismo imediato. Ah, só mesmo a delicadeza da
alma poderá entender esses mistérios cheios de
sensibilidade e poesia...
Os
traços de sua pele acaramelada a faziam ser única
entre as demais jovens de sua cidade. Ninguém era
como ela. Seu corpo que já conquistara sua
autonomia, silenciosamente soube degustar a mais
sutil das conquistas: aquele jovem que lhe
apaixonara, por fim já não só flertava com ela, mas
também lhe correspondia com paixão. Suas sensações
já não viveriam no exílio em seu corpo, o hermetismo
da luxuria já não viveria no casulo físico de sua
entranha, o murmúrio preguiçoso da libido estava a
desabrochar-se e a metamorfosear-se. A química entre
eles era forte e definitiva. Quantas surpresas não
estariam à espera deles, assim que se soltasse das
amarras do pudor?
Sob a marcha nupcial e sobre um tapete vermelho eles
se casaram. Ela de vestido branco com flores
primaveris e as pupilas encharcadas de amor. Ele com
traje a rigor e com as retinas cheias de amor. Em
líricas e boêmias madrugadas os cônjuges se amaram
perdidamente e ao paraíso seus corpos foram levados.
Da estática janela do computador ela agora vasculha
sua casa e ainda escuta ruídos amorosos, silêncios
ruidosos e entre eles sente a utopia, a utopia que
sonha com “era uma vez...”
E foi assim com a expressão “era uma vez” que
antigamente a calma dos passos maternos - já
descompassados pela dupla jornada diária - pela
noite iniciava o alegre solfejar na lira que Deus
lhe deu. Foi com sua suave voz, que como mãe passou
a abraçar as histórias criando seu próprio verso.
Era uma vez... igual o Gênesis: no principio foi o
Verbo nas sementes do Criador. E o fruto foi fluindo
por cerca de nove meses. Era chegada à hora do fruto
adquirir sua própria forma, sua própria
personalidade. E o ventre se abriu presenteando-lhe
com cada filho em sua própria época.
Era
uma vez. A vez de sua mão acariciar os frutos do
amor, suas duas fadas meninas e seus dois duendes
meninos. Ela sonhou por eles? Sim. Sonhou e tem
aprendido que ela não pode sonhar os sonhos de
ninguém. Eles pertencem a cada um e são íntimos de
cada alma. Aprendeu depois de muito tempo enfim, que
pode sim, compartilhar deles, mas não sonhá-los por
eles. Sonhar tão somente os seus e realizá-los já é
sinal de grande sabedoria. E em suas histórias, ela
lhes contara sobre os fortuitos privilégios
reservados aos meninos de sua época e negados às
meninas e como ela não podia vencer este mito, a
única saída era juntar-se a eles e ir para a rua
jogar futebol, soltar papagaios, ser equilibrista de
circo. A condição feminina era a parte mais fraca de
qualquer contexto naquele tempo. Mas suas rugas
viram a pílula anticoncepcional chegar quebrando
tabus, viu as feministas queimarem sutiãs e a
revolução sexual, sentiu a conquista feminina ao
mercado de trabalho, viu o divórcio separar os
casais, a vinda da lei Maria da Penha e - mesmo
disfarçada - florescer a legitimidade dos desejos
fantasiosos e libidinosos das mulheres.
Ela
também presenciou o regime autoritário castrar os
ideais políticos de maneira desconfiada, sentiu
minguar a essência da democracia de forma camuflada,
e os anseios masculinos se metamorfosearem a favor
da liberdade igualmente vista a ambos os sexos
presentes na modernidade. Os momentos inesquecíveis
dispensam palavras, adjetivos ou locução verbal.
Cenas inesquecíveis dispensam advérbios ou
conjugação verbal, pois não há ouro que pague as
grandes produções do filme singularmente
esplendoroso da vida. E baixinho ela me confidencia
que jamais encontraria um par melhor para ela, por
mais que procurasse. Não importa se seu amor foi
tímido disfarçado em silêncios ou se foi alegre e
escandaloso. O importante é que além das algazarras
e das farras do destino, a essência do amor é
sussurrada em voz quase inaudível e entre ela e seu
marido o amor prevaleceu. Todavia, tem consciência
de que não foi nem é uma mãe melhor do que outra
mãe, mas gostaria de ter sido. Seu amor é
silencioso, assim mesmo, porque sua alma é
silenciosa e emotiva. Era uma vez um coração que
temia se desmanchar em meio a suspiros de amor e
lágrimas de saudade. O leitor tem agora duas opções:
1-
Apague este capitulo mais belo uma história de amor.
2- ou o confirme, porque não foi mera coincidência
seus olhos lerem estas palavras. Foi simplesmente
uma muda sincronia.