Era uma vez

 

Mariângela Repolês

 

 

 

Era uma vez... duas meninas e dois meninos que foram protagonistas de uma história de amor e fizeram brilhar estrelas no paraíso terráqueo existente na vida de um casal enamorado.
A dama progenitora cita Gilberto Gil e olhando fotografias de seus filhos ela suspira parafraseando: “há de surgir uma estrela no céu cada vez que você sorrir. Há de surgir uma estrela no céu cada vez que você chorar.” Sem alternativa mais adequada, ela afivela as malas e voa. Para onde? Não sei. Sei apenas que sua voz está irregular - como se estivesse fazendo algo incomum - e em seu coração existe uma conotação rítmica mais acelerada e mais complexa. Mas, suas asas não têm controles de direção, nem flaps, nem leme.
Quase a completar seus setenta anos de idade - digo por sua aparência aflita - ela quer realizar um único pedido: que neste vôo ela volte aos anos de mil novecentos e quarenta e cinco e comece tudo de novo.

 

Lamentavelmente ela sabe que é impossível ser atendido seu desejo. Fazer o que? Infelizmente não tem como viver de promessas vazias. Como em um filme seu passado ressurge e assim ela o pontua: não dá para eu me acostumar com sua grandeza e deixá-lo no anonimato das lembranças. Seus dedos irreverentes fazem agora uma dança interpretativa, tal e qual sua memória ainda lhe concede, enquanto a chuva não chega. Com sua força poética, emocionados eles vão clicando e transpondo os limites de seu universo particular. Com sua imaginação privilegiada, metáforas cheirando a ausências, acordes a despertar o coração, o cálice do ventre de sua mãe quase a transbordá-la de suas águas amnióticas, e um denso silêncio que escondia seu cantar se faz presente com seu renascer em um feliz trinta e um de maio.
Seus dedos artesãos continuam reconstituindo novas leituras sem a perda de seus reais significados, com novas texturas que a remetem a um passeio em uma montanha-russa com subidas e descidas em sua alma.


Uni-duni-tê quase tem sido um mantra para que as lembranças cheguem e com toda sua infantilidade libertem a poesia dos brinquedos e com sua jovialidade oxigenem sua mente para o lúdico e elas possam residir entre suas palavras.
Ah, meus dias infantes, ela diz para si mesma: que lástima! Sei que não há como voltar... mas eu também sei como me vingar de minha infância e lá eu retorno nas lembranças que se deitaram. Faço meus brinquedos ganharem vida, faço a boneca de pano brincar entre minhas letras, faço a alegria do papagaio ser comandada pelas mãos da menina arteira.
“Uni-duni-tê... meu sonho encantado onde está você”?
Naquele corpo raquítico havia versos minguados em poesia, nele havia a lua e as estrelas e toda fantasia cabia na palma de sua mão franzina.
Mas, disseram-lhe que sua infância já não existia. Ela havia ido embora. Aí houve a anulação da rua rumorosa, das alegrias ruidosas, das brincadeiras liricamente inocentes deixando somente um silêncio permanente. Mas ela só acreditou, quando precisou usar sutiã e não lhe escaparam o cheiro do pecado e da sedução, que vestiam seu corpo em primavera, que enfeitava sua sensualidade morena brotada na pele, na pele ataviada de seus poros, na pele bronzeada que a tantos pasmaram ante sua cor de canela.

 


Ah, aquele tempo de corações desenhados nos troncos das árvores, com a flecha de cupido a transpassá-los. Ah, aquela adolescência que em grande parte vivida a dizer “não” aos sentimentos aos quais gostaria de dizer “sim”. Ah, aquela jovem que lisonjeada se sentia com os arrepios via espinha dorsal, causados por um flerte mais atrevido, por uma luxuria libidinosa que vagueava por destinos desconhecidos, como fora para os navegadores que o mar cruzava. Por uma razão simples isto sempre lhe acontecia. Ela era uma jovem interiorana e vivia sob as normas disciplinares existentes em sua casa paterna anotadas em seu subconsciente e obedecidas, caso contrário teria de conformar-se com tal sorte ou arcar com as consequencias. Sua alma sem qualquer experiência na vida, além das brincadeiras na rua, no quintal com seu circo mágico, se viu a sorver o mel de sua mocidade. Seus cabelos castanhos escuros - como asas de uma graúna - voavam livremente sobre seus ombros, sem qualquer outro recurso ou subterfúgio, porque eram lisos demais. Mas não passaram impunes aos olhos maliciosos de um jovem. E ela passara a sonhar com aqueles olhos que pareciam engolir o caminhar de seu corpo, quase de uma menina grande e ingênua. E ela se viu a sentir-se enamorada dele e sua lição de geografia lhe afirmava que se seguisse em linha reta, por certo, iria chegar a seus braços, todavia se caminhasse um pouco para o norte, sua sorte seria - em breve - ser beijada por ele.
 

Ela passa a viver o futuro em vez do presente e a dança de um acasalamento se ensaia com um ar sensual, com um magnetismo imediato. Ah, só mesmo a delicadeza da alma poderá entender esses mistérios cheios de sensibilidade e poesia...

Os traços de sua pele acaramelada a faziam ser única entre as demais jovens de sua cidade. Ninguém era como ela. Seu corpo que já conquistara sua autonomia, silenciosamente soube degustar a mais sutil das conquistas: aquele jovem que lhe apaixonara, por fim já não só flertava com ela, mas também lhe correspondia com paixão. Suas sensações já não viveriam no exílio em seu corpo, o hermetismo da luxuria já não viveria no casulo físico de sua entranha, o murmúrio preguiçoso da libido estava a desabrochar-se e a metamorfosear-se. A química entre eles era forte e definitiva. Quantas surpresas não estariam à espera deles, assim que se soltasse das amarras do pudor?
Sob a marcha nupcial e sobre um tapete vermelho eles se casaram. Ela de vestido branco com flores primaveris e as pupilas encharcadas de amor. Ele com traje a rigor e com as retinas cheias de amor. Em líricas e boêmias madrugadas os cônjuges se amaram perdidamente e ao paraíso seus corpos foram levados.
Da estática janela do computador ela agora vasculha sua casa e ainda escuta ruídos amorosos, silêncios ruidosos e entre eles sente a utopia, a utopia que sonha com “era uma vez...”


E foi assim com a expressão “era uma vez” que antigamente a calma dos passos maternos - já descompassados pela dupla jornada diária - pela noite iniciava o alegre solfejar na lira que Deus lhe deu. Foi com sua suave voz, que como mãe passou a abraçar as histórias criando seu próprio verso.
Era uma vez... igual o Gênesis: no principio foi o Verbo nas sementes do Criador. E o fruto foi fluindo por cerca de nove meses. Era chegada à hora do fruto adquirir sua própria forma, sua própria personalidade. E o ventre se abriu presenteando-lhe com cada filho em sua própria época.
 

 

Era uma vez. A vez de sua mão acariciar os frutos do amor, suas duas fadas meninas e seus dois duendes meninos. Ela sonhou por eles? Sim. Sonhou e tem aprendido que ela não pode sonhar os sonhos de ninguém. Eles pertencem a cada um e são íntimos de cada alma. Aprendeu depois de muito tempo enfim, que pode sim, compartilhar deles, mas não sonhá-los por eles. Sonhar tão somente os seus e realizá-los já é sinal de grande sabedoria. E em suas histórias, ela lhes contara sobre os fortuitos privilégios reservados aos meninos de sua época e negados às meninas e como ela não podia vencer este mito, a única saída era juntar-se a eles e ir para a rua jogar futebol, soltar papagaios, ser equilibrista de circo. A condição feminina era a parte mais fraca de qualquer contexto naquele tempo. Mas suas rugas viram a pílula anticoncepcional chegar quebrando tabus, viu as feministas queimarem sutiãs e a revolução sexual, sentiu a conquista feminina ao mercado de trabalho, viu o divórcio separar os casais, a vinda da lei Maria da Penha e - mesmo disfarçada - florescer a legitimidade dos desejos fantasiosos e libidinosos das mulheres.

 

Ela também presenciou o regime autoritário castrar os ideais políticos de maneira desconfiada, sentiu minguar a essência da democracia de forma camuflada, e os anseios masculinos se metamorfosearem a favor da liberdade igualmente vista a ambos os sexos presentes na modernidade. Os momentos inesquecíveis dispensam palavras, adjetivos ou locução verbal. Cenas inesquecíveis dispensam advérbios ou conjugação verbal, pois não há ouro que pague as grandes produções do filme singularmente esplendoroso da vida. E baixinho ela me confidencia que jamais encontraria um par melhor para ela, por mais que procurasse. Não importa se seu amor foi tímido disfarçado em silêncios ou se foi alegre e escandaloso. O importante é que além das algazarras e das farras do destino, a essência do amor é sussurrada em voz quase inaudível e entre ela e seu marido o amor prevaleceu. Todavia, tem consciência de que não foi nem é uma mãe melhor do que outra mãe, mas gostaria de ter sido. Seu amor é silencioso, assim mesmo, porque sua alma é silenciosa e emotiva. Era uma vez um coração que temia se desmanchar em meio a suspiros de amor e lágrimas de saudade. O leitor tem agora duas opções:

 

1- Apague este capitulo mais belo uma história de amor.

 

2- ou o confirme, porque não foi mera coincidência seus olhos lerem estas palavras. Foi simplesmente uma muda sincronia.
 

Mariângela Repolês é alvinopolense, educadora e poetisa.

Contato : mariangelarrepoles@hotmail.com