A atração
do circo
Orlando de
Souza
Eugênio
Ferreira tinha uma atração doentia pelo circo.
Quando chegava
à cidade qualquer companhia de cavalinhos, com muito gosto,
ele se encarregava de adquirir as necessárias licenças na
Polícia e na Prefeitura, de botar anúncios nos periódicos e,
às vezes, até de cuidar da bilheteria.
Guarda livros
competente, moço distinto, elemento de valor na sociedade
local, não se envergonhava de, como qualquer mecânico, bater
palmas, aclamar artistas, atirar o chapéu no picadeiro, nuns
excessos de aplausos plebeus.
O
arrependimento, no dia imediato, era conseqüente as
nimiedades ridículas da noite.
Fazia, então,
propósitos firmes de não repetir aqueles atos picarescos.
Mas em vão. O
circo atraía-o, não era senhor de si na hora dos
espetáculos, não podia conter a impetuosidade de seu
entusiasmo pelas cenas arriscadas, pelo difícil equilíbrio
do arame.
Os
trapezistas, os equilibristas, os crowns, os domadores, os
animais amestrados, as pantominas – tudo tinha para ele uma
fascinação irresistível.
Então os
palhaços...
Para Eugênio
Ferreira, nada mais engraçado do que um palhaço no
picadeiro.
E se os
espetáculos do circo reles aos outros não agradavam, lá ia
ele defender a Cia, nos grupos amigos:
- Vocês não
têm gosto. Querem melhor do que a função de ontem: Circo é
sempre circo. Tanto vale o famoso Sarrazani como qualquer
Cia modesta de arrabalde!
Chamava ao
circo de “Monumento de todos os tempos”, uma das glórias do
próprio Tarquino, o Soberbo, célebre criador do Circo
“Máximo”.
E vinham as
dissertações :
- Os circos
existem desde 425. Especializaram-se na Espanha e Chilpério
I construiu dois grandes na França: um em Soissons e outro
em Paris.
E o célebre
Circo “Olímpia”?
E o famoso
Circo “Singer”?
O circo sempre
foi a diversão predileta dos civilizados.
Muitos dos que
ouviam o moço guarda livros se retiravam, murmurando:
- Bom moço...
pena é esse fanatismo!
No mínimo,
acaba um dia palhaço de qualquer Companhia...
E tal era a
idéia fixa de Eugênio que, nas suas conversações, amiúde
repetia:
- Eu sou o
circo!
E os amigos
confirmavam:
- É verdade.
Você errou de vocação...
Uma tarde, ao
entrar num beco deserto, que conduzia a praça principal,
quando passava um palhaço anunciando o espetáculo daquela
noite, Eugênio Ferreira não resistiu a um desejo louco de
acompanhá-lo. Era um trecho despovoado, longe das vistas de
seus impiedosos amigos. E o fez, satisfeito e entusiasmado,
respondendo com o gaio bando de guris à cantilena
arlequinesca :
“- O palhaço,
o que é::
- É ladrão de
muié!!!”
Entregue a
aquela louca manifestação, feliz, fe-li-cí-ssi-mo, abraçado
a dois moleques e com mais dois dependurados pelas abas de
seu paletó, Eugênio Ferreira jamais poderia pensar na
possibilidade de ser visto por um dos amigos. Mas ali estava
Anacleto, ao pé da calçada, com os olhos espantados,
abanando a cabeça e dizendo, em tom repreensivo :
- Era só o que
faltava!...
Eugênio
enrubesceu alguns segundos; depois, como se despertasse de
um sonho, ficou ali parado, vitorioso, deixando que o
palhaço se distanciasse e que os outros moleques passassem
por ele. Veio até a calçada, olhou firme o amigo, sentou-se
no meio-fio, com o paletó nas mãos, cansado e suado. Os sons
da cantoria iam-se perdendo rua abaixo. Só então conseguiu
falar:
- Sem saber,
você disse uma grande verdade, Anacleto.
E contou:
- Quando eu
era pequeno, tinha desejo de acompanhar com meus
companheiros de infância os palhaços que passavam nas ruas,
anunciando o espetáculo. Meu pai, sempre grave, cheio de
preconceitos, se opunha a realização do meu desejo, dizendo
que um filho de família não devia acompanhar palhaços.
Cresci. Já moço, eu sentia essa mórbida atração, que vocês
conhecem, pelas cousas do picadeiro e cumpri o maior desejo
de meus tempos de menino. Era só o que faltava!
E com o rosto
todo aberto num sorriso:
- Agora estou
curado. O circo já não mais me atrai.
Este conto foi
transcrito do livro "Alvinópolis e Literatura", de autoria
do nosso querido José Afrânio Moreira Duarte, lançado em
1973.