Vanderlei Lourenço
Eu nasci em setembro.
Acontece que meu pai é "unha e carne" com São
Sebastião. E, quando eu nasci, cismou de homenagear
o amigo...
fiquei em apuros, naturalmente. Lembro-me que eu
usava um balaio (nós morávamos no interior e meu pai
passava horas trançando bambu para fazer balaios.
Fazia-os de todos os tamanhos e em todos os
formatos, inclusive de berço. Para mim, era uma
coisa poética observar a sua arte, quando criança),
mas, voltando ao assunto, eu, recém nascido, ouvi,
porque, naturalmente, as crianças ouvem tanto quanto
os adultos. E, por falar nisso, faço uma pausa para
explicar que não há coisa mais aborrecida para um
recém nascido do que ser tratado como retardado por
adultos que fazem aquelas caras e bocas e falam as
palavras pela metade...
Bom, mas, voltando, novamente, ao nosso assunto...
eu ouvi meu pai dizer que o nome escolhido era uma
homenagem ao seu amigo mártir, São Sebastião. Lógico
que, no embalo do susto, cai do balaio e bati a
cabeça. Até hoje tenho soltos os parafusos que
fariam de mim um adulto normal...
Depois disso, chorei uma semana. Sem parar. E,
claro, sem dormir. Meu choro era tão alto que todas
as benzedeiras da região acorreram à minha casa para
saber de minha mãe o que estava acontecendo. Acho
que minha mãe, coitada, nem conseguia atinar com
tudo aquilo, pois o meu choro a obrigava a ficar
acordada a noite inteira cuidando de mim. Até os
balaios meu pai parou de fazer, para tentar arrumar
algo que me acalmasse.
O que ele não sabia era que bastava mudar o nome
para eu voltar a sorrir...
Durou uma longa semana o meu choro. Benzedeiras me
benziam de vento virado, quebranto e mais uma
infinidade de coisas que só elas sabem. Chás de todo
tipo de erva eram colocados na minha mamadeira e
médicos de todo o Brasil e de diversas
especialidades foram chamados para me examinar.
Houve até um americano que se encontrava de férias
no país e, sabendo do estranho caso do bebê que
chorava sem parar, apareceu para me examinar.
No terceiro dia desse desatino, minhas lágrimas
provocaram uma enchente. A maior já vista naquelas
redondezas. E, foi tanto, que, no lugar em que tudo
começou, nasceu uma fonte que deu origem a um rio,
hoje chamado "Rio São Sebastião". Afinal, alguma
coisa tinha que restar em homenagem ao Santo.
Minha madrinha de batismo, Dona Efigênia,
fazendeira, mulher de pulso, ficou sabendo lá para
as bandas de Bateias, onde morava, que o pequeno
povoado de Toledo estava em polvorosa por causa de
uma criança que chorava sem cessar. Ficou sabendo,
também, que aquelas lágrimas tinham um profundo
poder curador: quando derramada sobre algum
ferimento, a pele cicatrizava no mesmo momento e,
quando ingerida, curava qualquer moléstia. Não foram
poucas as pessoas que, desenganadas pelos médicos,
vieram ter em minha casa, trazendo grandes latas
vazias, que enchiam com minhas lágrimas e levavam na
cabeça. Faziam chás, banhos e até usavam para
cozinhar. Então, ela mesma que, apesar de mulher
forte, tinha lá as suas fragilidades e desconfiada
com o relato que lhe chegava aos ouvidos, veio nos
fazer uma visita. E que visita!
Quando estendeu as mãos para o berço e me pegou no
colo, meu choro cessou. Ninguém entendeu nada, mas,
eu já sabia quando ela entrou, que ali estava o anjo
da guarda da minha salvação. Olhou-me assim de lado,
encarou-me, assim de frente e, percebendo que eu
queria comunicar-lhe algo, chamou o meu pai, que, ao
contar a minha saga, acabou por revelar o seu
interesse em homenagear São Sebastião, dando-me o
mesmo nome. Principalmente agora, que o santo
operava o milagre de secar minhas lágrimas.
Foi nessa hora que a coisa aconteceu. Devolvendo-me
ao berço, vermelha de raiva, perguntou ao meu pai
como ousava querer me batizar com nome tão
escalafobético! E, do alto da sua autoridade, fez um
inesquecível discurso que não vou reproduzir por ser
muito longo, concluindo que, a insistir nessa
heresia de assim me batizar, ele que fosse procurar
outra madrinha. Não contasse com ela. Estava
ofegante e sua imagem refletida na luz da lua dava
bem a dimensão do que ocorria ali: era Santa
Efigênia, a Santa viva que veio me defender.
Pobre pai. Além de São Sebastião, também era unha e
carne com Santa Efigênia. Que levava vantagem por
estar viva. E agora? A quem contrariar?
O que o levou a decidir-se eu não sei, talvez tenha
sido o fato de, entre os vivos e os mortos, preferir
não comprar briga com quem está mais próximo. O que
todos sabem é que desistiu do nome. E, mais do que
isso: delegou a ela o direito de escolher o nome que
mais lhe agradasse.
Ela piscou e eu tive um acesso de riso que me
acompanha até os dias de hoje.
Vanderlei Lourenço é alvinopolense, poeta e
escritor.
Email :
Vanderhugo@yahoo.com.br
Blog :
http://www.vanderhugo.blogspot.com