“Seu papagaio vai subir melhor e ficará
mais firme se você mudar a geometria dele”
Ouvi estas palavras há 54 anos,
aproximadamente, sem saber o que era mesmo a tal de geometria. Mas, elas
ficaram muito bem gravadas na memória, porque eram a geometria da amizade,
dessas coisas que a gente aprende pela vida afora e não esquece. Foi num
sábado, já tão distante, aí por fins de 1952. Eu estava lá no alto, onde fica o
adro da Capela do Rosário de minha grandiosa cidadezinha natal, próximo ao
Cemitério, tentando empinar um papagaio que nunca alcançava a altura desejada
e, em seu esvoaçar turbulento, ficava dando “cabeçadas”, termo usado quando as pipas não rumavam quase serenas
pelo azul então sem fim para o olhar infante. O Toninho concluiu o que havia
começado a falar:
-
A
forma de seu papagaio está mais para losango, quando o melhor é retângulo. Veja
o meu, é quadrado. Observe a altura que está e como se comporta.
Gostei daquelas palavras, não tanto pelo
resultado que eu poderia obter com os futuros papagaios. Percebia nelas a
espontaneidade e sinceridade, qualidades que adivinhávamos cedo nas pessoas.
Mas, que diacho era mesmo o tal de retângulo, losango? Quadrado até que dava
para entender.
Éramos originários de famílias humildes:
ele era filho de um carpinteiro e meu pai sustentava a penca de filhos
transportando mercadorias em seu pequeno caminhão. Estudávamos no mesmo e único
Grupo Escolar que lá existia, em séries diferentes, já que eu tinha nove e ele
onze anos.
No dia seguinte ao encontro no adro, na
hora do recreio, ele me procurou e se ofereceu para ensinar como fazer o
papagaio ao seu jeito. Combinamos que um dia faríamos isto, após o almoço, em
sua casa, depois de terminados os trabalhos escolares (o “para-casa”). Minha
mãe após perguntar quem era, de qual família, permitiu-me ir a casa dele.
Fui para a casa do Toninho e ele, todo
feliz, me apresentou à sua mãe e disse:
-
Mãe,
por favor, faça daquele biscoito frito para servir com café a meu amigo Jorge.
Aquela fala elegante e a expressão “meu amigo” promoveram em mim uma mistura
de surpresa e satisfação, me pondo até um pouco confuso. Nos meus nove anos eu
ouvia meu pai falar sobre seus amigos, e esperava ficar adulto para ter também
os meus.
Fizemos os
para-casa e sua mãe chamou para o café. Em seguida fomos para a
oficina do seu pai, onde o Toninho pegou uma régua, um lápis, uma folha de
papel de seda e, em minutos, estava decidido o novo formato de minha próxima
pipa: um retângulo.
À noite, quando fui para a cama, fiquei
muito tempo pensando e aquela tarde não saía da minha mente. Não pelo convite,
não pelos biscoitos fritos, não pelo eventual sucesso do novo papagaio mas pela
expressão “meu amigo”, que tanto me
tocou.
Continuamos com a nossa vida rotineira.
Aos sábados, nossos pais nos permitiam ir à Capela do Rosário soltar pipas,
mesmo lugar em que também jogávamos futebol.
Um dia resolvi
retribuir o convite que o Toninho me fez, chamando-o a ir também à minha casa.
Após fazer os deveres escolares, substituímos os biscoitos fritos,
assentando-nos no quintal, debaixo de um abacateiro, esperando despencar os
frutos que já se encontravam maduros. Antes de ele ir embora, minha mãe falou:
Gote (meu apelido familiar), arranje uma sacola e dê a ele alguns abacates para
levar. E cresciam as amizades dos dois
calças-curtas. Amizades autênticas, inocentes, desinteressadas. Nunca mais
ninguém falou que um era amigo do outro. Apenas agíamos como tal.
Num determinado dia, estávamos jogando
futebol no Rosário. Em certo momento, a bola estava comigo e, lá do outro lado,
ele gritou: mande a bola pra mim aqui, ô Gote. Aquela frase produziu o mesmo
efeito da que ele pronunciara em sua casa, me chamando de “meu amigo”. Gote era
apelido carinhoso com o qual me tratavam pais e irmãos. Causou-me alegria
aquela sua demonstração de familiaridade.
Aconteceu que, de outra vez, também numa
“pelada”, um colega nosso dirigiu-se a mim usando o meu apelido. O Toninho
interferiu: NÃO ! O nome dele é Jorge. Pare com isto. A partir deste dia o
Toninho, na presença de terceiros, nunca mais me tratou como Gote. Passou a
fazê-lo só quando estávamos a sós. Ele me disse, posteriormente, que faria
assim porque se sentiu culpado de falar em público, coisas pessoais e
particulares, como o são as de família. “Um apelido de família tem que ser
respeitado”.
Chegou o dia do meu aniversário e ele
veio me visitar. Lembro-me, era tardezinha, estava à janela quando ele apareceu
na curva da rua, com um embrulho na mão. Chegou, deu-me um abraço e disse que
aquele embrulho era uma lembrança para mim. Como era costume nosso só receber
presentes no Natal, aquele foi mais um gesto de
alegria que a amizade me proporcionara. Abri o embrulho. Era um caminhãozinho.
Mas, o melhor, não era um caminhãozinho comum, não era de loja. Ele o fez e com
capricho, sem luxo. Aquele era único e foi feito para mim. Ele pegou uma lata
de sardinha aberta, rebateu-lhe as rebarbas para não provocar cortes, pregou-a
em um sarrafo de madeira para representar a carroceria. Um toco de forma
cônica, pregado na extremidade, era o motor. Fez quatro rodas de madeira,
procedeu com a mesma habilidade para se conseguir a cabine. Ficou muito bonito.
Mas o melhor foi saber que ele se preocupou em me trazer um presente e tê-lo
feito com as próprias mãos.
Aproximou-se o aniversário dele também.
Eu não tinha oficina e nem dinheiro para comprar presentes. Fiquei preocupado.
Pedir dinheiro aos meus pais, fora de cogitação. Fui salvo quando chegou de
viagem uma tia que fora à Capital, trazendo um dinheiro que meu padrinho mandou
para mim. Pensei: A LAPISEIRA! Saí correndo em direção à loja do Sr. Manoel
para ver se o presente ainda estava lá ou se já havia sido vendido. Várias
vezes o Toninho me disse que estava de olho nela, porém sem poder comprá-la.
Estava lá e o dinheiro deu para comprar, o que fiz na hora, pois não podia
correr riscos. Na véspera do aniversário ele me procurou e fez o convite. No
dia seguinte não seria preciso falar da alegria estampada em seu semblante.
E a amizade, ainda que sem declarações e
estardalhaços, só fazia aumentar.
Comecei a observar que apareciam muitas
amizades e que quase todas eram diferentes daquela entre mim e o Toninho. As
outras tinham qualificações: amigo leal, amigo de toda hora, amigo do peito,
amigão, etc.. Nossa amizade era mais simples, não tinha o bordado dos adjetivos
que as outras precisavam trazer. Também comecei a perceber a diferença que as
outras amizades tinham em relação à nossa, eram declaradas com eloqüência:
“nossa amizade nunca vai acabar”, “prefiro perder tudo a perder sua amizade”.
As qualidades que as acompanhavam, os adjetivos e as declarações enfáticas,
recebiam maior grau de intensidade quanto maior fosse a ingestão de cerveja
pelo amigo que viesse a declará-las. Em várias oportunidades, pude constatar
que nossa amizade tinha uma característica notável: não era ostentada
gratuitamente, não nos projetava socialmente; não nos tornava mais populares em
razão dela mesma. As outras sim, faziam isto sempre. Contudo, não sem espanto,
pude observar a atitude de um
sujeito que não perdia oportunidade de declarar a um “amigo” seu que este podia
se orgulhar porque tinha um “amigo de toda hora” e que, no entanto, não pôde
comparecer ao funeral dele, pois, quando ficou sabendo do acontecido, já havia
combinado com outros companheiros algumas partidas de baralho.
Mas o tempo foi passando. Baile,
hora-dançante, esporte, pescarias, tudo isto preenchia nosso brilhante tempo,
além, é claro, das horas de estudo no Colégio e em casa. Éramos organizados e
sabíamos discernir o dever do lazer.
Mas as coisas mudavam, e como! Ele
começou a namorar uma conterrânea, a Carmem. Moça de uma beleza invejável.
Beleza estilo atrizes italianas. E era beleza natural. Ela se levantava da cama
já bonita, pronta. E não fazia pinturas, nem cílios postiços, nem maquiagem,
nem nada. Dotada de um grande humor, era muito franca. O que tinha de falar,
era na presença dos envolvidos, sem rodeios. Pessoas assim são as mais
confiáveis. Nada de ti-ti-ti, nada de “não fale que fui eu que falei”, nada de
picuinhas. Por sua vez, as qualidades dele eram de valorizador da cultura,
cumpridor das obrigações, honesto com a sociedade, pontual com os compromissos.
Casaram-se.
Por circunstâncias da cidade onde
morávamos, tive que me transferir de lá, para cuidar do meu futuro.
Distanciei-me, porém sem me desligar da terra. Todas as vezes que lá eu ia,
tinha que me encontrar com o Toninho.
Mas teria que voltar à cidade onde
passei a morar. Teria que enfrentar a gravata, as reuniões, os “amigo
inseparável”, “amigo fraternal”, “amigo confiável”. Ia-me esquecendo de falar
do “amigo oculto”. Vinha sempre no meio de muita música, muito doce, muita
balela. Já vi comentários de os agraciados criticarem a qualidade e o preço do
presente recebido. “Ah que bom ! O
caminhãozinho era bonito, não tinha preço...”
Num desses
retornos, voltei preocupado. A Carmem havia falecido repentinamente, levando
consigo a sua alegria, a sua franqueza, a sua beleza. O meu amigo,
conseqüentemente, tornou-se outra pessoa. Taciturno, calado, sem saúde, não
reagia. Fiquei mais preocupado quando constatei que minha agenda profissional
não iria permitir idas constantes lá para estar com ele, para tentar
estimulá-lo.
Fui cumprindo minhas obrigações e não
sobrava tempo para cuidar das coisas pessoais.
Surgiu então uma data em que, nem que
quisesse, poderia evitar uma volta à terra natal:
o carnaval. Além da desnecessária cobrança dos meus filhos, eu não agüentava
mais de ansiedade para ver se “ele” havia melhorado.
Chegamos, tiramos as malas do carro e
fomos ver meus pais. Tudo em ordem, todos com saúde. Pedi licença e disse que
iria sair só para constatar uma coisa e voltaria logo. Quando cheguei à rua, vi
um amigo meu e dele e, sem rodeios fui perguntando:
-
E
aí? Como está o Toninho?
-
Então
você não ficou sabendo?
Não precisava falar mais nada. Senti o chão faltar
debaixo dos meus pés. Respirei fundo e pensei: falhei ! Falhei em não alardear
a nossa amizade, para todos saberem que eu deveria ser avisado. Saí pensando.
Pensando fundo e andando, lembrando das derradeiras vezes em que nos vimos. Da
última, pulei logo para a anterior, pois nesta ele ainda riu, contou casos; na
antepenúltima nós fomos pescar e conversamos o dia inteiro. E continuei a
repassar minhas lembranças. Cheguei à lapiseira, cheguei ao caminhãozinho, cheguei
ao abacateiro, cheguei aos biscoitos fritos; fui andando, passo a passo,
cheguei ao pé do morro do Rosário e fui subindo pensativo, até à antiga Capela
e cheguei ao retângulo da infância, já tão distante do meu dia-a-dia. Vejam só,
de novo a geometria ! Mas embora nas proximidades das coisas e dos lugares,
havia diferença. Há anos, alegres e vivazes, estávamos no adro do Rosário,
próximo ao Cemitério; agora estávamos no Cemitério próximo ao adro do Rosário;
antes o retângulo era colorido, corpo celeste que planava leve ao vento; agora
era escuro, pesado e fixo no chão, traçado para todo o sempre; o primeiro
iniciava uma amizade feliz e graciosa; o de agora deixava uma tristeza colada
às lembranças; o primeiro tinha apenas inscrita na
memória a mensagem “meu amigo”; o de agora tinha
somente uma sentença tumular:
AQUI JAZ
ANTÔNIO CORRÊA
Desconsiderando as críticas que sempre
fiz publicamente em se qualificar amizade, mas obedecendo a meus mais puros
sentimentos, inclinei-me e, molhando o dedo indicador nas lágrimas que caíam
sobre a lápide, fiz surgir naquela hora, ainda que de maneira fugaz, uma nova
classificação de amigo, quando escrevi,
entre parênteses, na poeira ali assentada, na frente de seu nome:
(UM VERDADEIRO AMIGO).